sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Aqueles olhos azuis



Existe beleza na pequenas coisas e mais ainda nas pequenas coisas que passam pela cabeça de uma criança.
Já passava de seus oitenta anos. As dores no corpo e a memória um tanto falha denunciavam a longa jornada que havia trilhado até então.
Com tanto vivido e tão pouco a viver pela frente passara a apegar-se a lembranças de um passado distante e bom. O nascimento do primeiro filho. O dia de seu casamento. A primeira vez que foi a praia. Todas estas foram sensações únicas e ele sabia que muito do que era hoje havia dependido delas, mas algo o incomodava.
Ele meio que queria algo mais antigo. Algo que o remetesse aos tempos em que o tempo não fizia tanta diferença assim. Lembranças da infância com toda a certeza preencheriam essa lacuna, mas qual?
Sim. A idade havia chegado. E ele triste concluía o inevitável. Era um dos últimos de sua geração a estar vivo. Sua amada esposa se fora anos antes. Assim como seus irmãos mais velhos e seus amigos mais próximos. Refletia sozinho sobre a longevidade. A vida era boa, não tinha do que reclamar. Gozava de relativa boa saúde. Teve filhos ótimos e que te deram muito orgulho e netos encantadores. Todas grandes alegrias, mas aqueles que poderiam ajudá-lo a recordar de sua infância não estavam mais ali e isso o incomodava.
Levantou-se da poltrona com um pouco de custo e caminhou até a janela. A tarde estava bela com um sol não muito quente. Ele sentia aquele calor rejuvenescedor em seu rosto e por um instante lembrou-se dos olhos azuis. Mas o que aquilo significara?
Seus olhos eram negros como a noite. Como poderia ter a lembrança de ter tido olhos azuis? Coisa de velho talvez. A cabeça costuma pregar peças num octagenario e estava ali brincando com ele.
Cismado, viu o dia passar e quando a noite chegou, adormeceu.
Dia seguinte acordou cedo. Estava disposto a descobrir o segredo por trás daquele fragmento de memória. Puxou uma caixinha de dentro de uma gaveta. Ali estavam preciosidades. Um pequeno tesouro ao qual jamais abriria mão. Haviam fotos, uma correntinha de São Bento e muitas cartas das quais uma em especial, escrita por sua mãe. Ele parou por algum tempo. Fitava aquela carta com um carinho especial. Estava naquele pedaço de papel a única lembrança palpável de sua mãe. Ele olhava e dizia a si mesmo como ela tinha uma caligrafia bonita. Refletiu sobre aquele pedaço de papel um pouco e em seguida pensou no celular de nova geração que seu filho mais novo lhe deu e com o qual eles trocavam mensagens. Lhe ocorreu que jamais havia escrito uma carta a qualquer um de seus filhos e que portanto, aquela sensação de ternura e nostalgia morreria com ele.
Beijou a carta como se fosse seu bem mais precioso e começou a lê-la. Era uma carta direcionada a sua avó e que narrava o primeiro passeio a praia que a família havia feito com o carro novo.
Num ponto da leitura ele parou e sorriu. Sua mãe elucidara sua dúvida. Um turbilhão de lembranças passou por sua mente. Lembrou-se então do porquê dos olhos azuis.
Nostálgico e emocionado decidiu por escrever uma carta direcionada a seus filhos. Queria que eles tivessem a mesma sensação que ele ao reler a carta de sua mãe. Ela começava assim:
"Meus filhos. Sei que a ideia de que os anos estão terminando para mim me assombra, porém, nunca fui de lamentar e meu gênio por vezes ruim me impede de dar-me por vencido. Estava lendo uma carta de mamãe e percebi que apesar de ter feito muito por vocês jamais externei em palavras meus sentimentos ou minhas memórias e portanto decidi escrever estas poucas linhas com uma lembrança que tive ontem. Uma lembrança de minha infância. Talvez a primeira de todas. Pode parecer algo singelo, comum talvez, mas algo que sei que vocês não sabem. Algo que por tanto tempo foi somente meu.
Quando criança lia muito e gostava muito das figuras nos livros. Na maioria delas as pessoas tinham olhos azuis e cabelos louros. Nunca achei bonito aqueles cabelos amarelos parecendo palha de milho, mas os olhos azuis, ah os olhos azuis. Talvez tenham sido a primeira coisa na minha vida que achei bonito.
Olhava para meus olhos negros no espelho do banheiro da casa de meus pais e desejava que eles se tornassem azuis. Diante de tal imaginação passei a acreditar que quando crescesse eles mudariam de cor. Devia ter uns cinco ou seis anos. Logo pela manhã, olhava no espelho e corria para peguntar a mamãe se faltava muito para eu crescer. Ela ria me abraçava, beijava e dizia que queria que eu nunca crescesse. Que fosse seu menino para sempre. Eu impaciente me desvencilhava de seus braços contrariado por ela não querer o mesmo que eu. Mal sabia que no futuro sentiria o mesmo por cada um de vocês minhas crianças.
Os anos passaram. Meu desejo, por motivos óbvios não se realizou. Mas o mais importante foi ter acreditado em algo, portanto, deixo um conselho meii piegas a vocês mas muito verdadeiro. Nunca desistam de nada por mais louco e impossível que seja. Olhos azuis existirão para todos...
Que Deus os abençoe. Beijo enorme de seu velho pai."
Colocou a carta sobre o criado mudo tendo a sensação de dever cumprido deitou-se e dormiu feliz como não dormira a muito tempo.

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